Aspectos jurídico-penais da tortura
(Com vista à delação premiada)
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Tem-se, como costume implantado na consciência dos povos, o conceito de ser a tortura uma atividade infligindo, sobretudo, dor física. Não se consegue, inclusive, assentar o período, na história da humanidade, em que o ser humano começou a praticá-la. Afirma-se, entretanto, que o homem é o único animal capaz de torturar, assertiva duvidosa, pois os aracnídeos têm, por hábito, enredar as vítimas dentro de teias, mantendo-as vivas durante algum tempo. Falando-se em aranhas, a viúva negra devora partes do macho enquanto este desenvolve o ato de procriação. Os aracnólogos, estudando o assunto, acentuam que às vezes o namorado consegue escapar, mas volta. É executado. Parece maldade, mas não é, porque a fêmea precisa de proteína para alimentar os bebês. De qualquer maneira, os humanos, em maior ou menor proporção, são sádicos, havendo bibliografia opulenta sobre o assunto (v. Aspectos jurídico-penais da tortura, tese de mestrado de Ana Maria Babette Bajer Fernandes).
A introdução é procedente. A “delação premiada”, ou “colaboração premiada”, ou ainda, em se tratando de pessoas jurídicas, “acordos de leniência”, têm relação com o tema. Não se perca tempo buscando premissas pelas quais nosso sistema repressivo adotou essas criaturas satânicas (delação ou colaboração), fundidas numa só, constituindo-se em permuta de segredos por recompensas advindas, é certo, do Poder, representado pelo Ministério Público, Polícia Judiciária e, extravagantemente, pelo Poder Judiciário em geral, despontando juízes de 1º Grau.
Volte-se à assertiva: o povo acha, ou entende, que tortura é atividade física produtora de dor consequente ou não a ferimentos dos quais o sangue extravasa, exceção feita às equimoses guardando dentro dos tecidos a sufusão sanguínea. Não, não é assim: o conceito moderno de tortura, inclusive dentro da Lei 9.455, de 07 de abril de 1997, recente portanto, descreve o ato de constranger alguém, com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa. II – Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Vem um parágrafo 1º: Submeter pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. Também constitui tortura. Há agravantes se o crime é cometido por agente público, ou se é praticado contra criança, gestante, deficiente e adolescente, ou, ainda, contra portador de deficiência ou maior de 60 anos. Em princípio, é isso, bastando dizer que rarissimamente se vê agente público processado pela prática de atos assim definidos.
Interessa saber agora, apenas para efeito de fixação de aspectos básicos a serem mais tarde desenvolvidos com vagar, qual a medida e qual a dimensão do chamado sofrimento mental a que se pode submeter uma criatura para efeito de se lhe obter confissão de prática de atos delinquenciais. Certa vez, há muitos e muitos anos, o cronista, enquanto defendia um ou outro perseguido pelo regime ditatorial, soube de ocorrência havida no subsolo do casarão vermelho que guardava, hoje perto da Sala São Paulo, as terríveis masmorras da Polícia Política. Não se pergunte a razão de tal acontecimento, mas havia uma escada em caracol escondida dentro de um simulacro de quartinho, permitindo o acesso àquelas celas. Lá embaixo, uma criatura, posta no chamado pau-de-arara, nua, parecia estar gritando. Suava, amarrada como frango gordo despenado. Do lado de cá, visto em espelho impermeável só numa das faces, outro suspeito, circunstante horrorizado, via tudo. Haviam-no ameaçado de comportamento igual. Daí, a criatura confessou o certo e o incerto, extremamente disposta a evitar aquele tratamento horroroso. Terminada a sessão, o hipotético torturado recebeu uma toalha suja, secou-se, vestiu a roupa e voltou para casa, lépido, pois tudo não passara de simulação. Enfim, o ficticiamente seviciado já se dispusera àquele brinquedo sádico, delatando o companheiro, espectador que tremia da cabeça aos pés.
Evidentemente, o segundo confitente havia sido torturado psicologicamente, embora não se lhe tocasse um só fio de cabelo. Tal hipótese incorpora, diga-se, a parte final do artigo 1º, número I, da lei número 9.455, de 07 de abril de 1997.
Não se voltará o cronista a trabalhar sobre o comportamento dos inquisidores do século XV, com relevo para a Igreja Católica. A tortura era cientificamente aplicada, é certo, não valendo a pena a descrição de minúcias. Resta saber, frente aos hábitos desenvolvidos com a ativação, no Brasil, da delação ou colaboração premiada, se há, de alguma forma, ou algum aspecto, prática conducente à tipificação de uma das figuras contempladas na lei precitada. Pense-se em encarcerado, submetido a prisão temporária, ou mesmo preventiva, ou ainda encarceramento resultante de condenação, pesando sobre o todo receio de extensão da coerção física à pessoa da mulher, dos filhos, de um parente, ou até mesmo de uma concubina. Tem, o preso, suspeita de que tais criaturas, envolvidas ou não na conduta hipoteticamente delituosa do recluso, serem submetidas, também, a restrição da liberdade. O capturado mistifica tudo. No decorrer das inquirições, feitas com técnica adequada (há pessoal especializado nisso), pode surgir remissão a tal imaginário. Não se diga que isso acontece mas, se não acontecendo, começa a se constituir numa possibilidade sensível. Daí, ultrapassados dias e às vezes meses, a situação se torna insuportável, principalmente quando, nas visitas, os familiares de sexo feminino são obrigados a praticar as manobras tradicionais (agachamentos, abertura de pernas, desvencilhamento de sutiãs, abertura de bocas com amostragem das línguas, sem contar movimentações ainda mais aviltantes). A partir daí, o preso se dispõe a conversar, ouvindo, então, alusões a uma próxima libertação.
Há, afirme-se, alternativas meio cômicas, mas não menos impressionantes. Conte-se, apenas em suavização do tema, peculiaridade ligada à religiosidade: Robin Williams (suicidou-se há pouco), era judeu. Tinha enfermidade cardíaca. Certa vez, puseram-lhe válvula feita de intestino de porco. A comunidade, ciente daquilo, começou a evitá-lo. Segundo se comenta, facção ortodoxa do judaísmo não come carne de porco. Verdade ou mentira? Pode acontecer. Vale o mesmo para muçulmanos. Houve relatos de tortura imposta a guerrilheiros, numa prisão qualquer, impondo-se-lhes a degustação de carne suína. Os prisioneiros se recusavam àquilo porque perderiam, mais tarde, o conforto de não se sabe quantas virgens. Dir-se-ia que tal resistência seria cômica. Não é não, é coisa muito séria…
São exemplos menos dogmáticos, é claro, porque em Direito, conforme os doutos, só vale aquilo que é posto em latim ou, no momento histórico presente, em boa língua tedesca. A simplicidade, entretanto, é melhor entendida.
Force-se um pouco a memória: durante a ditadura implantada no país a partir de 1964, havia o chamado “cachorrinho”, ou seja, o opositor ao regime servindo de colaborador ao sistema. Houve caso concreto, perdido agora nos arquivos implacáveis do narrador. O delator tinha mulher e filhos na rua, pesando sobre estes a ameaça de igual aprisionamento. Mereciam-no, segundo os agentes do militarismo. De qualquer forma, o medo da realização de tal ameaça era considerável a título de fator apto à provocação de delação. Finalize-se, até a título de comentário sardônico: os chamados mocinhos, ou anjos bons, têm família. “Lampião” tinha “Maria Bonita”. Pablo Escobar sustentava os seus, e muito bem. No reino animal inferior, crocodilos geram e sustentam filhotes. Hienas amamentam descendência. Predadores sanguinários atacam agressores aos rebentos. Funciona assim. Portanto, mulher e filhos de bandidos podem ser reféns importantes no eterno conflito entre o bem e o mal. Não se afirmaria, frente a tal conjuntura, que há justiça na manutenção ou até mesmo na indireta capacitação de ameaças assemelhadas. O relacionamento humano, nas pequenas e grandes situações, funciona assemelhadamente: até a educação dos filhos se faz, usualmente, no binômio recompensa-punição, valendo para as chamadas profissões religiosas: crime-castigo, pecado-punição, redenção-compensação. Vai por aí.
Retorne-se ao título: “Delação premiada e Tortura”. A lei em epígrafe sugere trilha sofisticadíssima quando aplicada pelo Poder Judiciário, homologando ou não as confissões obtidas. Os executores e os intervenientes, todos envolvidos na relação causal, podem pisar em terreno repleto de estilhaços pontiagudos, porque não é difícil aos agentes do Poder o resvalamento por condutas tipificáveis na lei especial. Reflita-se sobre a manutenção de prisões durante meses, vendo-se o recluso deixado em solidão, enquanto outros, e muitos, ganham a liberdade após delações plúrimas. Vige sobre aquilo tudo uma perspectiva não expressamente posta, mas pairando acima, correspondendo a uma permuta: confissão é igual a liberação. A família se aterroriza, pois vê um hipotético comparsa a transitar, indene, reassumindo, inclusive, funções no Parlamento. No entremeio, há um consenso de vontades: o Ministério Público, representado por gente muito jeitosa, ajusta entendimentos com advogados contratados por familiares do capturado. Há minutas provisórias, não assinadas, é claro, mas contendo os benefícios pretendidos e outros oferecidos. Traz-se à disputa o patrimônio a ser abandonado e aquela parte a ser mantida. Negocia-se, inclusive, a não propositura de ação penal contra a esposa do preso (não se diga que as concubinas ficam à margem). Dá-se, ocasionalmente, a chamada “Síndrome de Estocolmo”. Para quem não sabe, é o acontecido com Paris Hilton, herdeira de enorme fortuna, sequestrada por guerrilheiros e convencida, ali, a acolitar-se com os extremistas, transformando-se também num deles. Acontece, nessas múltiplas delações a se transformarem, hoje, em rotina no panorama penal brasileiro, característica análoga àquela síndrome, podendo-se parafrasear: uma “Síndrome de Calabar”, relembrando-se a figura tornada famosa na inconfidência mineira. Explique-se melhor: no agrupamento de promotores de justiça, juízes processantes, carcereiros, presos e respectivos advogados, sucede uma espécie de colaboração surrealista, na medida em que todos, mas todos mesmo, começam a trabalhar sobre conceitos absolutamente ilícitos, porque não se pode negociar hipótese de infrações penais públicas, algumas muito graves, como se aquilo fosse mercadoria posta nas prateleiras de uma casa de comércio, transformando-se o magistrado no dono da mercearia, encarregado, no fim das contas, de anotar no caderninho, a lápis cuja ponta foi umedecida na boca, o resultado da transação. No fim de tudo, o fecho é abstruso, funcionando em arremedo do lixo deixado nas calçadas. Resta, a título de vitória, o melhoramento da situação prisional do encarcerado, podendo este respirar fora das grades. Aqui, todo cuidado é pouco, pois o Supremo Tribunal Federal pode transformar-se em dono de supermercado, homologando o escambo pérfido. Consta que o Ministro Teori Zavascki lançou despacho, em uma das delações, querendo saber se houve ou não constrangimento de qualquer natureza contra o delator.