Garantias individuais no procedimento do júri alguns aspectos do direito vigente e do projeto n° 156/2009*
René Ariel Dotti
I. INTRODUÇÃO
O Tribunal do Júri na história constitucional
A corte de jurados surgiu em nosso país com a Lei de 18 de julho de 1822, antes, portanto, da proclamação da Independência (07.09.1822).Originalmente, o Júri foi criado para julgar os “casos de abuso da liberdade de exprimir os pensamentos”. Acolhendo a influência e o estilo estrangeiro, o Código de Processo Criminal de Primeira Instância (Lei de 29.11.1832), previa o “Jury de accusação” e o “Jury de Sentença” (arts. 238 a 274).
Desde a primeira até a última das leis fundamentais, a instituição do Júri tem sido expressamente mantida,(1) com exceção da Constituição autoritária (10.11.1937), decretada com o Congresso Nacional em recesso. Sob a vigência do Estado Novo, foi editado o Dec.-lei nº 167, de 05.01.1938 que, mediante recurso da acusação, autorizava o Tribunal de Apelação a modificar a decisão dos jurados para “aplicar a pena justa ou absolver o réu”, se o veredicto não encontrasse nenhum apoio na prova dos autos.(2)Ficou na história dos maiores erros judiciários o malsinado processo contra os irmãos Joaquim e Sebastião Naves, absolvidos duas vezes pelo Júri de Araguari (MG), mas condenados em grau de recurso pela Câmara Criminal do Tribunal de Apelação mineiro (1939), à pena de vinte e três anos e seis meses de prisão celular pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, primo e sócio de Joaquim e que havia desaparecido da cidade sem que o “cadáver” fosse encontrado. A pena foi reduzida para 16 anos e 6 meses em revisão. Os infelizes irmãos cumpriram a metade para a obtenção do livramento condicional. Para surpresa geral, no dia 24.07.1952, a “vítima” foi encontrada pela polícia quando, sorrateiramente, retornava à fazenda de seus pais, em Nova Ponte (MG).(3)
II. O JÚRI NO DIREITO VIGENTE E NO PROJETO Nº 156/2009
Avaliação
O disegno di legge nº 156/2009(4) do CPP(5) avaliou positivamente o sistema de procedimentos instaurado com as Leis nº 11.689, 11.690 e 11.719, de 2008. Vale repetir: “A se destacar, em matéria de procedimentos, a introdução no processo penal brasileiro de novas regras para o Tribunal do Júri, com o objetivo de permitir um processo muito mais ágil, sem qualquer prejuízo ao exercício da ampla defesa”.(6)
Algumas mudanças essenciais
§1º a instrução preliminar
A Lei nº 11.689/2008 alterou radicalmente o procedimento do Júri, suprimindo, modificando e criando dispositivos para integrarem o CPP (arts. 406 usque 497). A instrução preliminar, com prazos reduzidos, é preparatória da pronúncia, impronúncia e a absolvição sumária. A sequência de atos previstos pelos arts. 406 a 412 revela extraordinária vantagem frente ao sistema revogado, porque impede a grande distância entre o fato e o julgamento, em prejuízo do conceito da justiça criminal e do princípio da razoável duração do processo.
§2º a decisão de pronúncia
O art. 413 e seu § 1º do CPP reduzem a influência que a motivação da pronúncia possa exercer sobre os jurados. A decisão deve limitar-se à indicação da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou participação, além da declaração do dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena. O Projeto mantém a restrição, com economia de palavras (§ 1º do art. 322).
§3º a absolvição sumária
O art. 413 do CPP tem redação mais apropriada. O velho diploma previa apenas a decisão de exclusão de crime ou a isenção da pena ameaçada pelo recurso de ofício, com efeito suspensivo (art. 411). A nova orientação contempla, ainda, a absolvição antecipada, se: a) for provada a inexistência do fato; b)for provado que o acusado não é autor ou partícipe do fato; c) o fato não constituir infração penal. O recurso contra a absolvição sumária ou a impronúncia é a apelação (CPP, art. 416), sem efeito suspensivo. O Projeto acompanha (art. 328).
§4º fechamento de uma usina de prescrição
Ao dispor que o réu solto não encontrado será intimado da pronúncia por edital, o parágrafo único do art. 420 do CPP fecha uma das usinas de prescrição. A regra do velho regime determinava: “O processo não prosseguirá até que o réu seja intimado(7) da sentença de pronúncia” (art. 413).
A extensão continental do país e as naturais dificuldades de localização do réu acarretavam o arquivamento de inúmeros processos, pela prescrição vintenária, contado o prazo desde a pronúncia. O Projeto adota essacláusula salvatória no interesse do magistério punitivo (parág. ún. do art. 328).
§5º julgamento sem a presença do acusado
O art. 474 do CPP permite o julgamento sem a presença do acusado. Em liberdade, ele pode exercer a faculdade do não comparecimento como corolário lógico do direito ao silêncio. Tal franquia eliminará outra usina da prescrição, além de estar em harmonia com o restante do sistema. Os arts. 413 e 414 do ancien régime tinham razão de ser até o advento da Lei n.º 5.349, de 03.11.1967, que revogou a prisão preventiva obrigatória, e da Lei n.º 5.941, de 22.11.1973, que concedeu liberdade provisória ao pronunciado primário e de bons antecedentes. Antigamente, a prisão preventiva ou de pronúncia era regra; agora, é exceção. Nenhuma dificuldade havia antes para intimar pessoalmente o réu da pronúncia ou da sessão do Júri. Com efeito, ao receber a denúncia por crime punido com dez ou mais anos, o juiz decretava, automaticamente, a prisão. Também para o Projeto o réu será interrogado “se estiver presente” (art. 382).
§6º aumento da participação popular
O direito vigente ampliou sensivelmente a atuação popular na prática judicante do Tribunal do Júri: a)o alistamento multiplicou conforme a população da comarca; b) no regime passado, eram convocados cidadãos junto às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas. Atualmente, além daquelas fontes o juiz requisitará também às associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades e junto a “outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado” (§ 2º, do art. 425). O Projeto mantém esse modelo de convocação (§ 2º, do art. 333) e acrescenta: “Qualquer cidadão que preencha os requisitos legais, poderá se inscrever para ser jurado” (§ 3º do art. 333).
Também haverá proatividade do juiz de fato na instrução plenária, quanto ao acesso aos autos e à solicitação ao orador para o esclarecimento de fato por ele alegado (CPP, art. 480 e Projeto, art. 388). No ancien régime, somente era permitida a indagação sobre a folha dos autos em que se encontra a peça por ele lida ou citada (parág. ún. do art. 476).
§7º eliminação do libelo e preparação do processo
A eliminação do libelo já constava do Anteprojeto Frederico Marques(1970), no Projeto nº 1.268, de 1979, e no Projeto de 1983, coordenado por Francisco de Assis Toledo e aprovado pela Câmara dos Deputados em forma de substitutivo, sendo retirado pelo Governo quando se encontrava no Senado. A manutenção daquele procedimento era justificável ao tempo em que o acusado aguardava preso a instrução e o julgamento em face da obrigatoriedade da prisão preventiva, como foi dito. A partir das Leis nº 5.349/67 (alterou a redação original do art. 312 do CPP) e nº 5.941/73, (alterou a redação original do §2º, do art. 408 do CPP), a liberdade do réu durante o processo e, mesmo em caso de condenação, em face dos recursos ordinário, especial e extraordinário passou a ser a regra.
Os arts. 422 e 423 vigentes do CPP estabelecem as regras para a preparação do processo para julgamento com a apresentação do rol de testemunhas, juntada de documentos e requerimento de diligências. Estas, quando necessárias para evitar nulidade ou esclarecer fato relevante, serão ordenadas pelo juiz que, na sequência, fará relatório sucinto do processo e determinará a sua inclusão em pauta da reunião do Júri. No sistema revogado, o relatório era lido em plenário, geralmente sem receber qualquer atenção das partes e dos jurados. O Projeto mantém esse itinerário (arts. 330 e 331).
§8º simplificação do questionário
A revolução copérnica no procedimento do tribunal do povo ocorreu com a substituição de um questionário complexo, gerador de nulidades e/ou erro judiciário, por um método absolutamente simples e adequado à vontade do magistrado leigo, que consiste em absolver ou condenar, reduzir ou aumentar a pena. Esse foi um dos problemas mais graves do Júri brasileiro por mais de 60 anos. O mestre Rui Stoco denunciou ser “uma absurda complexidade do sistema de formulação do questionário a ser submetido aos jurados”.(8)
As dificuldades rotineiras nessa área das perguntas e respostas produziram um número imenso e variado de nulidades.(9) A estatística poderia motivar pesquisas e textos acadêmicos sobre arte e a ciência de complicar as coisas simples. Na verdade, e na prática, era um tormento bíblico imposto aos protagonistas do processo, especialmente os procuradores das partes.
A regra do art. 483 do CPP, incisos e parágrafos, indagando a materialidade do fato, a autoria ou participação e “se o acusado deve ser absolvido”, foi parcialmente mantida pelo Projeto. O art. 391 suprime as duas primeiras perguntas para indagar “se deve o acusado ser absolvido”. Outra diferença: no CPP, após responder afirmativamente os dois primeiros quesitos, será formulado outro, objetivamente: “O jurado absolve o acusado?” A resposta negativa implicará a condenação, observando-se os §§ 3º e 4º do art. 483. O Projeto confirma a simplificação, mas dispensa o quesito individualizado (art. 394).
Notas
(1) Constituições: 25.03.1824 (arts. 151 e 152); 24.02.1891 (art. 72, §31); 16.07.1934 (art. 72); 18.09.1946 (art. 141, §28); 24.01.1967 (art. 150, §18); EC nº 1, de 17.10.1969 (art. 153, §18) e a Carta de 1988 (art. 5º, XXXVIII).
(2) Dec.-lei nº 167/38, art. 92, b c/c o art. 96. Tribunal de Apelação era a antiga designação do Tribunal de Justiça dos Estados.
(3) Maiores detalhes do processo e julgamento: Dotti, René Ariel. “O caso dos irmãos Naves”, em Casos criminais célebres, 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 108 e s.
(4) O Projeto nº 156/2009, com o Substitutivo proposto pelo SenadorRenato Casagrande e virtualmente aprovado pela Câmara Alta, será doravante referido apenas como Projeto.
(5) Na sequência desta exposição, os dispositivos em vigor do Código de Processo Penal – com as alterações determinadas pela Lei nº 11.689/2008 – serão referidos como CPP ou como direito vigente.
(6) Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal, Brasília: ed. Senado Federal, 2009, p. 20 e 21. (Os destaques em itálico são meus.)
(7) A intimação da pronúncia era sempre pessoal quando o crime fosse inafiançável (art. 414).
(8) Crise existencial do Júri no Direito brasileiro, em RT 664/252.
(9) Souza, Aélio Paropat. Quesitos do Júri no Direito Sumular, em RT 679/ 283 e s; Freitas Barbosa, Marcos Elias de. Regras e quesitos do Júri ante o Código Penal de 1984, em RT 649/233 e s.
*Artigo extraído do Boletim IBCCRIM ano 18, Edição Especial, de agosto de 2010